As Histórias que Contamos
- Andrea Kulikovsky

- 4 de ago.
- 3 min de leitura
Obrigada, Rodrigo, por me convidar para compartilhar um pouco da minha Torá hoje. Conheci o Rodrigo há cerca de 8 anos, quando nós dois trabalhávamos com Netzer – ele estava aqui, eu estava no Brasil. Agora, estamos juntos aqui neste espaço sagrado. É realmente incrível que aqui em Israel dois rabinos reformistas brasileiros possam se encontrar e compartilhar uma bimá juntos. É uma grande honra para mim.
Na última terça-feira, estávamos estudando a parashá desta semana pelo Zoom. Eu estava segurando a Telma no colo, quando falei sobre ser dona da minha história. Toda a situação me lembrou do poema de Merle Feld, "We All Stood Together" (minha tradução):
“Meu irmão e eu estávamos no Sinai
Ele manteve um diário
do que viu
do que ouviu
do que tudo aquilo significava para ele.
Eu gostaria de ter um registro assim
do que aconteceu comigo lá.
Parece que toda vez que quero escrever,
não consigo.
Estou sempre segurando um bebê
um dos meus
ou um para uma amiga
sempre segurando um bebê
então minhas mãos nunca estão livres
para escrever.”
Este poema fala sobre algo em que tenho refletido: como a mesma história, contada de ângulos diferentes, muda completamente. Se o livro de Devarim consiste em Moisés contando a história dos israelitas, como seria a versão de Miriam? Ou a de Aharon? O que os filhos de Moisés nos diriam, ou sua esposa?
Quando eu morava no Brasil, tínhamos jantar de Shabat quase toda semana com toda a minha família. Dez a vinte pessoas ao redor da mesa. Os momentos mais divertidos eram quando minha mãe e seus irmãos contavam histórias de sua infância. Eles se corrigiam enquanto compartilhavam suas memórias. Cada um podia contar uma versão diferente do mesmo evento.
Cada história tem perspectivas diferentes. Essas perspectivas não se apagam – elas enriquecem a história. Entender isso é essencial hoje. Vivemos em tempos de verdades absolutas, de pensamento em preto e branco. O direito de um povo parece apagar o direito de outro. Essa polarização está tornando o mundo um lugar assustador novamente.
Esta viagem a Israel foi planejada há meses. Quando a guerra começou, a maioria dos estudantes decidiu não vir. Mas eu decidi vir mesmo assim. Eu estava com medo, mas algo me dizia que era hora.
Passei três semanas em Jerusalém. Conheci pessoas muito diferentes, velhos e novos amigos, e ouvi suas histórias. Eles me contaram sobre a exaustão de viver em guerra por tanto tempo. Sobre o aumento dos custos, empresas em declínio, problemas de saúde mental. Pessoas se machucando. Pessoas morrendo.
Esta viagem a Israel me desafiou a ouvir outras perspectivas, o que pode ser difícil. Às vezes, é muito doloroso. Mas essas pessoas também estavam preocupadas comigo – vivendo em um mundo onde o antissemitismo está atingindo níveis perigosos. Onde ser judeu significa ser o outro. Ouvir suas preocupações me fez perceber algo: sou estrangeira no Reino Unido. Quando estou no Brasil, sou uma rabina. Em Israel, sou judia progressista. Onde quer que eu vá, sou “o outro”.
O escritor brasileiro Carlos de Assumpção nos ensina: "O ato de escrever se completa quando alguém lê." A história só existe porque alguém a conta e outras pessoas a ouvem. Quando as pessoas realmente se ouvem, novas perguntas surgem. Nos tornamos mais próximos.
Moisés reúne o povo de Israel para ouvir sua recontagem da história – todo o livro de Devarim. Ele os prepara para recontar essa história inúmeras vezes. Histórias, especialmente as escritas, estão aqui para nos ensinar. Lendo histórias do passado e refletindo sobre elas, podemos encontrar respostas para o presente.
“E então
Com o passar do tempo
Os detalhes
Os dados concretos
O quem, o quê, quando, onde, por quê
Escapam de mim
E tudo o que me resta é
O sentimento
Mas sentimentos são apenas sons
O latido vocálico de um mudo
Meu irmão tem tanta certeza do que ouviu
Afinal, ele tem um registro disso
Consoante após consoante após consoante
Se nos lembrássemos juntos
Poderíamos recriar o tempo sagrado
Faíscas voando”
A Torá é uma fonte incrível para nossas vidas. Lendo, estudando e questionando essas histórias, mantemos a Torá viva. Mantemos o povo judeu vivo. Completamos o texto bíblico ouvindo essas histórias e adicionando as nossas.
Que possamos ler a Torá para ouvir nossas próprias histórias. Que sejamos responsáveis por nossas narrativas e por mudar o curso da história. Que possamos lutar para ouvir as histórias uns dos outros. E com a ajuda da Torá, que possamos construir uma revolução moral. Que nossa Torá compartilhada nos traga de volta a uma vida boa.
Shabat Shalom.



Comentários