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Lech Lechá — a passagem que acabamos de ler — começa com Deus dizendo a Avram para deixar sua terra, sua família, sua identidade e ir para um lugar que Deus lhe mostraria.Deixando tudo o que lhe era familiar, levando apenas a esposa, o sobrinho e algumas “almas” que reuniu pelo caminho, Avram segue sem olhar para trás — e recomeça.


Não seria fácil. Ele cometeria muitos erros. Mas ao deixar para trás tudo o que lhe dava conforto e segurança, ele se abre a uma grande transformação — uma mudança que o tornará digno de ser lembrado como patriarca até hoje. Sarai, sua esposa, muda com ele — através da dor, dos desafios e dos próprios erros. Ao final desta parashá, embora a jornada ainda esteja longe de acabar, eles recebem novos nomes: Avraham e Sarah. Uma nova era começa com a transformação deles.


A doutora Avivah Gottlieb Zornberg, estudiosa e autora britânica da Torá, ensina que quando Deus chama Avram para “Lech Lecha”, não é um castigo nem um exílio — é um convite.Pela primeira vez na Torá, deixar a própria casa não é uma perda, mas um começo. Avram é chamado a se afastar de tudo o que o formou — sua terra natal, a casa de seu pai. É chamado a abrir mão do que é familiar, a caminhar na incerteza, em uma jornada sem destino claro, apenas com esta promessa: “para a terra que Eu te mostrarei.”


Pensando em todos os nossos antepassados que um dia também partiram — que deixaram tudo o que conheciam e começaram de novo — lembrei-me do meu avô paterno. Ele deixou a Itália com os irmãos — as “almas” que reuniu — em busca de uma vida melhor do outro lado do oceano. Ele não era judeu. Não fugia de perigo. Não foi expulso. Os tempos eram simplesmente difíceis — e ele decidiu seguir em frente. Ele sabia o que estava deixando. Sabia até para onde ia. Mas nunca poderia imaginar no que sua jornada se tornaria.


Zornberg diz que o que torna esse momento de partida tão sagrado é justamente a incerteza. A jornada de Avram não é sobre geografia — é sobre transformação. Ele está mudando de um modo de ser para outro. E esse movimento — essa travessia — vem acompanhado de dor. Ir adiante, mudar, sempre significa atravessar algo. Avram e Sarai representam isso. Eles estão desenraizados, sem filhos, vagando sem lar e sem um futuro que possam nomear. Vivem a akarut — a esterilidade — não apenas a ausência de filhos, mas a sensação de estarem cortados das fontes da vida.


Meu avô partiu e nunca mais viu seus pais, sua terra natal ou alguns de seus irmãos, que se espalharam pelo imenso território brasileiro — doze irmãos começando de novo, sem dinheiro, mas com coragem e força. A vida dele mudou completamente. Apaixonou-se por uma mulher indígena, filha de um xamã — raptou-a da aldeia, casou-se com ela e teve muitos filhos.(Como Avram, ele também teve… um problema com consentimento — quem estava na minha aula de parashat hashavuá vai entender!)


Zornberg ensina que deixar o próprio lugar é buscar tornar-se outro. A palavra hebraica makom significa “lugar”, “existência” — e também é um dos nomes de Deus. Quando Avram muda de lugar, ele muda de ser — e o mesmo acontece com Sarai. Quando Deus lhes dá novos nomes, é como se dissesse: “Vocês já não são quem eram. Saiam — e Eu os recriarei." É isso que Lech Lecha realmente nos pede: abrir mão das histórias que já não cabem, sair das formas que deixaram de nos dar vida, e permitir que sejamos transformados.


Acho que meus avós foram felizes à sua maneira. Um mudou o outro — e viveram o próprio lech lecha.Um dos filhos deles, meu pai, conheceu uma pequena, enérgica e inteligente moça judia — e casou-se com ela. Dessa união improvável nasceu o primeiro rabino brasileiro ordenado pelo Leo Baeck College — eu — e também o meu irmão.

Os sábios chamam esse tipo de mudança de akira — um desenraizamento. Não é fácil. Mudar de lugar é rasgar algo — os velhos padrões, as certezas antigas. Mas também é criar espaço para a bênção, para o renascimento, para uma nova luz que cai sobre nós “com uma diferença.”Deus os abençoa — Avram, Sarai e os meus avós. A bênção não apaga a dor; ela a transforma.


Avram e Sarai são os primeiros ancestrais do povo judeu.Meu avô, um rapaz cristão italiano que se casou com uma mulher indígena brasileira, tornou-se avô de uma rabina. Ele nunca poderia imaginar que esse seria o seu legado. Infelizmente, não viveu para ver isso acontecer.


Da mesma forma, quando ouvimos as palavras de Deus a Avram, podemos ouvi-las como dirigidas a nós. Às vezes precisamos partir — não porque sabemos o destino, mas porque ficar seria recusar crescer. Precisamos dar o primeiro passo antes que o caminho se revele. E talvez, como Avram — e como o meu avô — ainda não saibamos o que estamos nos tornando. Apenas que algo dentro de nós já está pronto.


A mudança nem sempre começa com clareza; começa com coragem.Seguir em frente, dar um passo no desconhecido, é confiar que podemos ser recriados — que a nossa própria partida pode ser o começo de um retorno mais profundo ao lar.


Que tenhamos a coragem de partir, de ir ao encontro de nós mesmos, e de realizar todas as possibilidades que a vida nos oferece. Que sejamos abençoados em cada partida, em cada caminho — hoje e sempre.


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