Adeus a um Profeta
- Andrea Kulikovsky

- 24 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de out.
Esta semana lemos a Parashat Noach. Encontramos duas grandes histórias — o Dilúvio e a Torre de Babel. Quando Deus vê a maldade da humanidade, decide recomeçar, salvando apenas Noach, sua família e os animais na arca. Mas por que Noach? A Torá nos diz:
נֹחַ אִישׁ צַדִּיק תָּמִים הָיָה בְּדֹֽרֹתָיו אֶת־הָאֱלֹהִים הִתְהַלֶּךְ־נֹחַ
“Noach era um homem justo; em sua geração, era íntegro; Noach andava com Deus.”
A expressão em sua geração pode sugerir, como ensina Rashi, que a justiça de Noach era relativa — que ele era bom em comparação com a maldade ao seu redor. E talvez seja isso o que Hilel quis dizer em suas palavras eternas: bemakom she’ein anashim hishtadel lihyot ish — “num lugar onde ninguém age com humanidade, seja um mensch.” Ser justo num tempo em que as pessoas se esqueceram da humanidade já é, por si só, um ato de santidade. Às vezes temos força para não nos deixar corromper pelo mal que nos cerca; às vezes, somos arrastados por ele. Ser tzadik bedorotav — justo em sua geração — não significa perfeição, mas persistência: a recusa em abandonar nossa humanidade, mesmo quando outros o fazem. Pode significar ser beinoni, manter o equilíbrio nessa corda bamba moral, escolhendo — de novo e de novo — andar com Deus.
Alguns dos mais importantes líderes judaicos contemporâneos — cada um em sua geração — nos ensinaram, com suas ideias e ações, que ser um tzadik é enfrentar a corrupção moral do seu tempo. Aprendi isso pela primeira vez quando estudava para me tornar rabina. Era 2018, meu primeiro ano de estudos rabínicos. Como tantos estudantes na era da internet e das redes sociais, comecei a seguir pessoas que admirava no mundo judaico e rabínico. Em um momento de ousadia, enviei um pedido de amizade no Facebook a um dos rabinos mais conhecidos do mundo — e, para minha surpresa, ele aceitou. Poucos minutos depois, pediu meu e-mail para que pudéssemos conversar. Eu mal podia acreditar. Apenas algumas semanas antes, eu havia escrito um trabalho chamando-o de meu profeta moderno.
Um profeta, como havíamos estudado, não é apenas um visionário ou um crítico moral, mas alguém que vê o mundo através do olhar divino. O profeta percebe a injustiça, a corrupção e a idolatria com clareza dolorosa — e não pode permanecer em silêncio. Nossos mestres nos lembram que o profeta olha para o mundo com uma paixão extraordinária e conduz os outros em direção à justiça. E como escreveu Abraham Joshua Heschel, o coração do profeta está dividido entre o amor e a ira — amor pela humanidade e indignação por suas falhas. O profeta está fora das estruturas de poder, guiado não pela autoridade, mas pela urgência moral — vendo o mundo tanto como ele é quanto como deveria ser.
Quando aquele primeiro e-mail chegou, era, em todos os sentidos, profético. Ele queria falar sobre a floresta amazônica. Já estava profundamente preocupado com seu futuro e com a sobrevivência dos povos indígenas que lá vivem — anos antes que a dimensão da devastação se tornasse pública. Nesta semana, cercado por sua família, ele se despediu deste mundo — e se tornou uma memória abençoada.
Seu nome era Rabino Arthur Ocean Waskow. Ele foi um profeta no sentido mais verdadeiro do judaísmo: alguém que uniu profunda percepção espiritual a uma visão moral destemida. Denunciou a injustiça, a corrupção e a profanação da terra — não a partir do poder, mas da compaixão e do amor pela humanidade. Como os profetas antigos, Waskow percebeu o sofrimento do mundo com dolorosa sensibilidade e transformou essa dor em ação. Seus escritos, seu ativismo e sua liderança incorporaram as qualidades proféticas de coragem, humildade e devoção à justiça. Para ele, as crises morais e ecológicas de nossa era não eram apenas questões políticas ou sociais — eram preocupações sagradas que exigiam despertar espiritual e transformação coletiva.
Nascido em Baltimore em 1933, Waskow trilhou o caminho de historiador a rabino com uma vida marcada pela inteligência e pela empatia. Desde os primeiros protestos contra a segregação racial e a Guerra do Vietnã até o trabalho inter-religioso e ambiental das décadas seguintes, foi uma voz de consciência em tempos turbulentos. Através do The Shalom Center, que fundou em 1983, inspirou gerações de judeus e pessoas de todas as fés a verem a paz, a ecologia e a justiça como expressões entrelaçadas da vontade divina. Para Waskow, a profecia nunca foi uma relíquia do passado, mas uma vocação viva. Sua voz uniu-se à de Heschel e de outros profetas modernos que compreenderam que orar também é agir — e que o amor a Deus deve se manifestar como amor pelo mundo. Em seu compromisso inabalável com o tikkun olam — a reparação do mundo — o Rabino Arthur Waskow tornou-se uma ponte entre a revelação antiga e a responsabilidade moderna, um profeta cujo legado continua a desafiar e inspirar.
E nesta semana, ao lembrarmos de Waskow, também recordamos outra voz profética extraordinária: a Rabina Sheila Shulman, de abençoada memória, cujo yahrzeit é marcado no calendário judaico em Rosh Chodesh Cheshvan. Confesso que não conhecia a Rabina Shulman antes de me mudar para Londres. Foi uma das minhas professoras — e integrante da nossa própria comunidade — a Rabina Judith Rosen Berry, quem primeiro me apresentou ao seu trabalho.
A Rabina Shulman foi uma teóloga feminista lésbica radical que transformou a vida judaica, criando espaços de pertencimento para quem antes se sentia excluído da sinagoga e da comunidade. Como rabina fundadora do Beit Klal Yisrael — a primeira comunidade judaica politicamente engajada do Reino Unido — inspirou mais pessoas a ingressar no rabinato progressista do que qualquer outro rabino na história britânica. Professora muito querida no Leo Baeck College, formou gerações com sua inteligência, sua poesia, seu humor e seu compromisso inabalável com a justiça e o feminismo. Sua vida foi um testemunho de coragem, autenticidade e fé na transformação. Assim como Waskow, ela encarnou um judaísmo profético — que fala a verdade ao poder, ama com intensidade e acredita que mudar o mundo não é apenas possível, mas sagrado.
Nas leis da teshuvá — arrependimento — de Maimônides, aprendemos que cada pessoa carrega méritos e faltas. Quem tem mais méritos do que falhas, mesmo que por pouco, é chamado tzadik, justo; quem tem mais falhas do que méritos é rasha, ímpio; e quem está no meio termo é beinoni. Mas Maimônides certamente sabia que a justiça não pode ser calculada como uma soma. Ser beinoni é viver na fronteira — equilibrando-se entre o bem e o mal — consciente de que uma única escolha pode mudar o rumo da nossa vida, da nossa nação e até do mundo. O Talmude aprofunda essa visão, ensinando que uma única mitzvá pode inclinar o mundo para o bem, enquanto um erro pode afastá-lo desse equilíbrio. Nossa tradição nos chama a reconhecer que cada um de nós sustenta o equilíbrio moral da criação — e, como ensinou Hilel, nossa tarefa não é calcular nossa bondade, mas vivê-la: um ato deliberado e compassivo de cada vez.
De Noach, do profeta Arthur Waskow e da Rabina Sheila Shulman, aprendemos que a justiça nunca é estática — é um equilíbrio constantemente reajustado por nossas ações e pelos tempos em que vivemos. Cada um deles, à sua maneira, nos ensina que temos o poder de inclinar a balança em direção à compaixão, à justiça e à renovação.
Que possamos, em nossa geração, ser menschlich — humanos e íntegros — mesmo quando outros não o são. Que sejamos inspirados pelos profetas do nosso tempo a agir com coragem, falar a verdade e reparar o que está quebrado. E que as memórias do Rabino Arthur Waskow e da Rabina Sheila Shulman sejam sempre uma bênção e uma inspiração — chamando-nos a continuar sua obra sagrada de transformar e redimir a realidade.
Shabat Shalom.



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